Do crédito ao consumo e do sobreendividamento activo
Nova crónica da secção Gestão de Fraude, esta semana da autoria de Mariana Costa
5:56, Quinta-feira, 21 de Jan de 2010
O contrato de concessão de crédito define-se, em termos genéricos, como o negócio jurídico por força do qual uma das partes cede à outra uma coisa ou serviço, mediante uma contraprestação futura. É neste elemento de posteridade que assenta a natureza específica da concessão de crédito.
Daí que, talvez mais do que em qualquer outra relação jurídica de natureza patrimonial, se tenha afirmado que a concessão de crédito assenta no princípio da confiança; mais especificamente, na confiança que o credor deposita no cumprimento futuro, pelo devedor, da contraprestação a que se obrigou, como contrapartida do bem ou serviço que já lhe foi prestado. Etimologicamente, a palavra crédito deriva do Latim credere, isto é, acreditar/ confiar.
Ora, se a importância central da confiança como motor das relações de crédito tem vindo a ser novamente realçada na sequência da crise económica, existe um sector onde esta parece paradoxalmente falhar como fundamento da protecção jurídica ao credor do contrato de crédito: falamos do crédito ao consumo. A título ilustrativo, não podemos deixar de recordar um processo judicial de execução para pagamento de dívida com que nos deparámos e que continha, como documento comprovativo de residência entregue pelo devedor aquando do pedido de concessão de crédito, a notificação da EDP a indicar o corte de luz por falta de pagamento.
Nestas situações, e perante o flagelo crescente do sobreendividamento activo de particulares, impõe-se perguntar: o que protege o Direito quando a relação de crédito é estabelecida à margem da confiança do credor? Deverá o Direito recusar ou atenuar a protecção jurídica concedida a estes casos?
A resposta terá de ser negativa.
A averiguação, pelas instituições bancárias, da situação financeira dos indivíduos a quem se propõem conceder crédito é um seu direito e ónus, mas não um seu dever. E esta conclusão é-nos imposta, desde logo, por força da dignidade inerente ao contraente passivo a quem é concedido o crédito. Admitir que o Direito se recusa a tutelar (e portanto a reconhecer) um contrato, pelo facto de uma das partes não ter tido a preocupação de aferir da possibilidade fáctica de cumprimento da outra é negar a esta última a dignidade fundamental de fazer opções, celebrar compromissos e responder por eles.
O Direito tutela o contrato de concessão de crédito, porque e na medida em que este se traduz num compromisso assumido por duas pessoas livres, capazes e, em condições normais, esclarecidas.
Porém, a vontade do consumidor num contexto de concessão de crédito ao consumo sofre influência de inúmeros factores, internos e externos, susceptíveis de a perturbar. Assim é que, muitas vezes, o consumidor contrata influenciado pela publicidade atractiva ou desconhecendo as hipóteses alternativas de contratação de que dispõe; outras vezes e apesar de ter uma vontade esclarecida acerca do objecto do negócio, o consumidor não se apercebe do total alcance das declarações que subscreve ou do regime supletivo que rege aquela relação negocial; outras vezes ainda, e com muita frequência no âmbito do crédito ao consumo, o consumidor é alvo da pressão das necessidades e acaba por, conscientemente, contratar em condições desfavoráveis, por falta de alternativa.
Daí a importância das diversas iniciativas legislativas levadas a cabo nesta matéria, de que se destacam, pela sua relevância, o regime das cláusulas contratuais gerais, previsto no Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, que faz impender sobre o fornecedor do crédito um importante dever de comunicação e esclarecimento das cláusulas do contrato; a Lei n.º 24/96, de 31 de Julho sobre defesa dos consumidores e, no âmbito do tema que nos ocupa, o Decreto-Lei n.º 133/09, de 02 de Junho, que regula o regime jurídico do crédito ao consumo e estabelece estritas exigências de transparência na celebração deste tipo contratual.